Sobre o amor


Não me lembro da primeira vez que o senti, talvez por isso o considero quase inato, associado à evolução do nosso eu. Lembro-me de chorar quando me morreu o Piruças, um pequeno cão que brincava comigo tardes a fio, fizesse chuva ou fizesse sol, por baixo da oliveira mais velha e torta da aldeia. O cão significava-me companhia, dedicação, brincadeira e o camião que o matou, passou a ser, naquele exacto instante, o meu pior inimigo. Não sei se até à sua morte tinha a noção do quanto o amava e é por isso que associo o nosso processo de pensamento como parte integrante deste processo essencial do ser humano. 

O Amor é um dos conceitos para o qual não existe dicionário, a não ser nos nossos afectos e na nossa concepção interna de ligação a outro ser. Já o tentaram descrever em poesia e em melodias (quem sabe as mais tristes acertam um ou outro verso, mas desconfio sempre dessa possibilidade), já foi rodado em romances de cinema, onde os beijos escaldantes prometem entreter os espíritos inquietos e curiosos, é falado, muitas vezes levianamente, nas bocas do mundo, como se tratássemos um conceito inferior, quando na realidade falamos do que o mundo pode ter de maior. 

Para o sentirmos em plenitude, necessitamos de o pensar, sob pena de na ausência de concepção não conseguirmos abranger a sua intensidade. Não que o sentir não seja o bastante para o considerarmos enorme, ou não fora o mesmo residente permanente dos afectos internos inexplicáveis e ruidosos, mas na realidade parece-me que carece de intelecto, para que saibamos da sua dignidade e da sua nobreza. Somos seres complexos, associamos pensamento a sentimento e creio que quem nos criou o tenha ordenado com o objectivo categórico do encaixe perfeito, que apenas nasce na fusão dos dois. Não julgo o amor animal um amor menor do que o nosso, pelas diferentes aptidões, jamais o faria. Encontro nesses seres verdadeiras provas de maternidade,  de paternidade, de grupo, de dedicação, mas a nossa faculdade pode ir muito além desta ligação congénita ao ser vivo, se conseguirmos olhar para nós e para o que nos une ao outro, sem medo do que poderemos encontrar. 

Falo nas mais diversas vertentes que possamos discorrer, embora todas tenham as suas particularidades. Desde as ligações de amizade, que nascem na mais tenra idade, às relações mais maduras que construímos com o crescimento, passando pelas uniões familiares, e ainda pelas paixões urgentes, dirigidas a alguém que naquele preciso momento reúne o suficiente para nos arrancar do chão e nos colocar erguidos acima do solo, num mundo onde o coração acelera, o corpo rejuvenesce e a alma parece pulsar vida e emergência. Curioso este fenómeno da paixão, contraditório, também ele difícil de explicar. Vem submerso em antagonismos e mistérios, forças que nos agarram o corpo e o tornam na mesma exacta medida, mais forte e mais fraco, mais atento e mais distraído, mais impaciente e mais sossegado, mais intenso e mais sereno. 

Olho ao meu redor e tento descobrir que outro propósito nos poderá trazer por cá. Respeito quem com consciência escolha outras vertentes da existência, mas honestamente sinto alguma compaixão de quem escolhe fugir desta essência que nos impulsiona desde que nascemos até que partimos e que será tanto mais plena quanto mais de perto a conseguirmos consciencializar, na sua imensa inconsciência. Olhar as ligações humanas com a nossa intelectualidade desperta, pode impelir o nosso caminho para uma evolução em potência, para descobertas perfeitas e imperfeitas, para corações plenos e corações partidos, até a um lugar onde nenhum foguetão e nenhuma ciência nos conseguirá transportar. 

Não deveremos esquecer o nosso amor inicial, connosco próprios. O respeito com que olhamos o nosso ser embate num confronto directo com o que conseguimos dar e serve de uma base perfeita para outras formas de amar. Parece tão simples, mas na verdade talvez percamos muito tempo em esforços rudimentares, direcções erradas e caminhos desconexos, procurando por nós em outro alguém, que poderá nunca chegar. O móbil é sempre o mesmo: A plenitude, o preenchimento do nosso eu, o fechamento de um círculo que internamente se afigure perfeito, imune ao sentido estético e aos destinos errantes, muito mais inteiro do que qualquer história que consigamos delinear num papel, numa tela, num quadro ou em qualquer outra obra de arte. Só quem já se despojou de ideais pré-concebidos, se libertou de preceitos e preconceitos e se procurou a si próprio com algum tormento, pode almejar entrar no território da excelência, imperfeita e inacabada, que estas ligações mais puras podem alcançar. 

O resto? É grito, é dependência, é corpo, é pouca ambição, é uma vida perdida num inglório fogo fátuo, um móbil que parece ter engolido o mundo, mas que há-de morrer. 

Nada neste processo é imediato, o caminho é longo, pode cansar. Mas vale cada passo, cada dia, cada noite, cada pedra, cada queda, cada palavra nova que internamente procuremos construir, sem que a consigamos realmente encontrar.

 

Dra. Carla Ferreira, Médica Psicóloga no Grupo H Saúde

segunda, 27 de dezembro de 21