O Lado Importante da Vida não Mora num Telemóvel


Cresci há muitos anos num mundo onde os baloiços se construíam numa oliveira e onde as bicicletas serviam para unir miúdos que moravam mais afastados, nas pontas das terras e das serras. Nesse tempo, o brincar era feito de imaginação, de bonecas, de jogos de corda e de apanhadas, de dias que escureciam na rua mesmo pingados pela chuva do Inverno, ou debaixo do calor tórrido do Verão ribatejano. Anos depois e ainda na minha história o cinema combinava-se na sexta-feira ainda na escola e o encontro era no café da terra, onde sabíamos sempre que iríamos encontrar toda a gente e mais alguma. O café ainda existe, os encontros também, mas hoje a facilidade da tecnologia transporta-nos para um universo paralelo, onde tudo é mais prático, mas bem mais complexo do que parece e também mais distante. 

Os jovens de hoje começam desde cedo a encontrar uma compensação imediata nos diversos dispositivos que permitem a mudança ao segundo. À distância de um click sabem onde está o amigo ou o que faz a namorada. Porque neste mundo actual a divulgação permanente do que se vive é levada ao extremo do imediato, engolindo a verdadeira vivência que passa a secundária perante a intensa necessidade de a evidenciar, mesmo que seja preciso mostrar o que deveria permanecer na esfera do privado. E o que se quer transmitir é muitas vezes um estatuto ambicionado, quase sempre pouco real ou tal esforço não seria necessário. Na ânsia desta construção e na limitação própria da sociedade, que tantas vezes despreza o valor próprio e semeia a competição, vamos “evoluindo”, crentes na imagem e descrentes na nossa própria individualidade. 

Na continuidade da saga da modernidade colocamos em causa a verdade das interacções. O contacto pessoal, o diálogo presente, a autêntica mais-valia do que são as relações humanas passam a plano secundário, com tudo o que acarreta de implicações no desenvolvimento da sociedade. E estamos perante um problema que não abrange apenas os jovens, esta atitude generalizou-se a todas as idades. E se é frequente encontrarmos pais e educadores preocupados com os exageros da tecnologia, encontramos outros tantos que a fornecem à descrição, compactuando inteiramente com os momentos em família adulterados por dispositivos pequenos e mágicos, um por pessoa, a matarem silenciosamente o que de mais precioso pode existir na vida: a ligação no frente a frente com quem mais gostamos. Parecendo ignorar o impacto vamos
seguindo por um território ondulante, porque o embate vai muito além do que se vê a olho nu. O alcance deste alargamento tecnológico estende-se ao desenvolvimento de competências sociais e pessoais, que vão ficando comprometidas sem darmos por isso. Não poderemos esperar que um jovem que alcança tudo ao minuto, tenha tolerância para a espera saudável da vida. Quando é posto à prova pode disparar, em impulsividade e reacção. Não poderemos esperar que se desenvolva a autonomia se controlamos ao segundo os passos dos nossos filhos. Se a conexão for perdida, o susto pode ser avassalador, para pais e filhos, dependentes da notícia e da ajuda instantânea. Não poderemos querer viver a nossa vida em sossego e em descrição se a cada momento publicamos onde estamos e o que fazemos. O direito à opinião e ao julgamento ganha uma importância que ninguém aprecia, mas com a qual todos compactuam, eventualmente inconscientes do próprio papel activo na construção deste tribunal social, rápido, cego, inflexível. 

Tudo se redimensiona e tudo se inverte, quando o que poderia ser um benefício da evolução se transforma num fenómeno de massas que coloca em causa os principais alicerces da vida: a comunicação e a relação. Dos mil amigos que se agrupam em fotos e em likes, restam uns poucos reais para os quais pode nem sobrar tempo, porque a prioridade é manter activa a rede de suporte interactivo. Da família que deveria partilhar a hora do jantar, sobra muitas vezes um ritual de alimentação, atormentado pelo andamento exterior, desatento à necessidade interior.
Da auto-estima, grandeza essencial da força de impulsão, surge uma comparação barata, indexada aos índices vendidos por influencers, a profissão de futuro para quem gosta de fabricar pessoas iguais. 

A estratégia de solução não é cabalmente eficaz, mas é o que temos de melhor. O diálogo, a auto-análise dos nossos próprios exageros. A capacidade de construir em família regras que não permitam a entrega total ao espaço virtual. O foco nos momentos de partilha, de lazer, de almoços triviais e de jogos de tabuleiro, os maiores mestres de todos quando o assunto são afectos. Construir momentos onde se possa valorizar o que realmente importa, e que possibilitem que a tecnologia permaneça o maior tempo possível onde deve permanecer: na utilidade do dia a dia, sem lugar de destaque ou qualquer outro tipo de vinculação - um vínculo saudável deverá ter sempre um coração.

 

 

Carla Ferreira 

Diretora de Recursos Humanos

quinta, 04 de junho de 20