Ginecologia - O fim do tabu


A quase/sempre odiada consulta de Ginecologia 

Pode parecer um bocadinho exagerado começar já a falar de forma hostil da minha actividade profissional mas a verdade é que a consulta de Ginecologia, ao contrário de outras que não aquecem nem arrefecem, gera sempre uma certa ansiedade na maioria das mulheres. 

Em primeiro lugar é um facto assumido que ninguém, que eu conheça, gosta de ir à consulta de Ginecologia, eu incluída. Sempre que vou, tenho uma cólica intestinal. Mas vou, sempre, religiosamente, todos os anos. Tenho sempre medo que a minha ginecologista encontre alguma coisa. Detesto aquela marquesa horrível em que tenho de me expor e quase no limite da minha agilidade física para conseguir fazer o exame bem feito. E sim, tenho sempre dúvidas sobre a qualidade da minha depilação e se algum do papel higiénico que usei antes da consulta ficou agarrado às minhas nádegas... 

Tudo o que envolve a consulta de Ginecologia nos assusta. O medo de não poder ter filhos; O medo de ter filhos e não querer; O medo de ter de retirar uma mama; O medo de ter um cancro do útero ou dos ovários... Muitos medos juntos. 

Tudo isto é verdade mas há medos que não me cruzam o espírito quando vou à minha consulta anual. 

Não tenho medo de ouvir comparações idiotas sobre a colocação do espéculo e a forma ou frequência com que tenho relações sexuais. Não tenho medo de ser chamada de mariquinhas, exagerada ou histérica. Não tenho de medo de ser humilhada na minha total exposição e de não querer voltar. 

Não tenho medo porque a minha ginecologista é uma profissional. O facto de ser uma excelente pessoa pode ter alguma influência mas isso não interessa nada. O que é determinante na forma como me sinto na consulta é sentir que estou a ser atendida por um bom/boa profissional que sabe exactamente o que tem de ser feito e como. Seja o toque ginecológico, exame do Papanicolau ou a ecografia pélvica com sonda vaginal, caso seja necessário. Um profissional que não é só um bom técnico mas um ser humano capaz de perceber que se eu estiver contraída ou ansiosa me vai custar mais. Que olha e vê na minha cara e no meu corpo o que estou a sentir e porque sabe que não é a fazer comentários desagradáveis sobre a forma como não estou a colaborar com o exame ou comparações ainda mais desagradáveis (para não lhes chamar outra coisa) com a posição desconfortável em que me encontro, que as coisas vão melhorar. Seguramente não é por ser antipático/a ou usar a força que vai melhorar. E é por isto que não falho uma consulta anual, mesmo com as cólicas... 

Também sei que esta não é uma realidade comum a todas as mulheres. Há pessoas que passam anos sem fazer a sua rotina ginecológica porque ficaram tão afetadas com certas coisas que ouviram que só a ideia de irem à/ ao ginecologista lhes dá volta ao estômago, ao sono e à vida e que por essa razão adiam-na indefinidamente. 

As consultas médicas são sempre uma situação de desigualdade e de fragilidade em que temos de nos colocar nas mãos de alguém que nos pode dar a pior notícia da nossa vida. Em que temos de confiar em alguém que não conhecemos de lado nenhum, que não é da nossa família nem nosso amigo para nos ajudar. Isto nunca é fácil. 

Os médicos não aprendem só a tratar os doentes. Aprendem a conhecê-los, a entendê-los, a pressentir os seus medos mais profundos. Aprendem, em suma, a perceber o que lhes vai na alma. Como é óbvio e acontece em todas as profissões, há os que nunca aprendem ou porque não querem ou não conseguem. Mas para os que prezam o que fazem e são bons profissionais este é um aspecto tão ou mais importante do que os detalhes técnicos e farmacológicos que utilizam nos tratamentos. 

Os médicos não têm de ser simpáticos. O ideal é que o sejam, obviamente, como em todas as facetas da vida e profissões.. 

Quem é que gosta de ser atendido todos os dias por um empregado de balcão que está sempre mal disposto? Ele até pode trazer o pedido muito certinho para a mesa mas a verdade é que sentimos sempre um certo desconforto e mal estar que um sorriso ou gentileza apagariam. Sim, os médicos não têm de ser simpáticos mas não devem ser antipáticos ou tratar de forma desadequada os doentes. 

Se o empregado de mesa for antipático ou me fizer um comentário desagradável sobre a cor ou o corte de cabelo que levo nesse dia é muito provável que nunca mais volte ao café onde isto aconteceu. 

Não deixo de ir tomar café, mas escolho outro local onde possa comer o meu pastelinho de nata num ambiente mais agradável com uma pessoa que mo entrega de modo gentil, a trautear a música da berra ou com uma frase agradável sobre o sol que brilha lá fora. 

Com os ginecologistas é a mesma coisa. Não é por termos tido uma experiência menos boa (ou mesmo horrível, sejamos francos) que devemos deixar de ir saber como está a nossa saúde. Até porque a prevenção é a melhor abordagem na resolução dos problemas e infelizmente os nossos medos podem não ser infundados, podemos mesmo ter um cancro da mama ou um tumor que nos vai fazer tirar o útero e nunca mais podermos ter filhos ou mesmo perder a vida. Por isto
é fundamental diagnosticar e tratar de forma eficaz qualquer problema para vivermos muitos anos felizes ao lado de quem mais gostamos. E os médicos, como os empregados de mesa, não são todos iguais. E a forma como lidamos com eles também não é igual. Nem todos valorizamos as mesmas coisas mas uma coisa é certa, ninguém gosta, seja em que situação for, de ser mal tratado ou humilhado e qualquer pessoa foge desse tipo de situação. 

Quando este tipo de situação é a consulta de ginecologia podemos estar perante uma catástrofe. Quando uma mulher passa 10 anos sem ir à consulta por ter tido uma má experiência e finalmente ganha coragem para descobrir que afinal tem uma situação que já podia ter sido identificada e tratada e atingiu proporções complicadas, não me parece aceitável. 

A horrível consulta de Ginecologia, não tem de ser horrível. A bem da verdade, as consultas já podiam ter sido substituídas por uma cápsula espacial em que bastava entrar e ficávamos logo a saber tudo sobre o estado de saúde das doentes mas a técnica ainda não evoluiu o suficiente. 

Temos mesmo de tratar de nós e de fazer os exames que nos podem salvar a vida sem ter, seguramente, de aceitar nada menos do que aquilo que sabemos que é correcto, justo e bom para nós.

 

Dra. Paula Ambrósio

Médica Ginecologista e Obstetra na Clínica CUF, Belém

segunda, 29 de março de 21