E depois da COVID?


É impossível esquecer quando saí à rua pela primeira vez, em Março de 2020. Na rua via nada para além de um peso que me acolhia o andar torpe, vagaroso, cuidadoso, assustado. Não sei ao certo quanto durou este meu primeiro confronto com a realidade mas, recordo o odor da rua, uma memória vagal que me acompanhará para sempre, recordo o vazio de gente e a estranheza, firme e violenta, dos meus caminhos de sempre. Questionei-me de que seria aquilo e depressa percebi que era medo, mascarado de coragem e quotidiano. Em vezes seguintes, já mais afoita e vencida pela realidade de uma pandemia emergente, percorri devagar algumas ruas da cidade. Não havia parques com crianças, não havia jovens a andar de bicicleta, não se viam velhinhas vagarosas ao sol da tarde. Não havia vida na rua. Havia casas, havia animais soltos e sozinhos, havia uma ou outra alma a beber os dias que nasceram nesta data histórica, escrita com um rigor absurdo, num calendário que ninguém escolheu. Passaram uns meses. Hoje saímos à rua e encontramos um mundo muito pior do que em Março. Milhares de mortos depois, muitos profissionais de saúde exaustos, muita solidariedade, muitas famílias separadas pela saudade e pela esperança. Teoricamente, deveríamos estar mais apreensivos neste preciso momento. Deveríamos olhar o mundo em desconfiança, evitar os encontros, reprimir os afectos, guardar a vontade de interagir, deveríamos morrer de medo, antes de adoecer com COVID. 

Mas tal não acontece. Tal não acontece porque o ser humano é dotado de uma capacidade forte de resiliência, o motor que nos permite avançar num território de guerra. Ninguém sabe como acontece, ninguém pensa no mecanismo, ninguém se debruça na forma como o nosso corpo e a nossa mente se reprogramam com a força do hábito, que nos permite crescer na adversidade. É uma das incógnitas da natureza, um dos milagres da vida. 

Deveremos olhar para ele. Os milagres da vida merecem um olhar atento para que possamos tomar consciência da capacidade do ser humano, e do nosso brilhante mecanismo de adaptação interno. É um recurso, semelhante a outros que podemos observar na natureza, basta para isso lembrarmos por exemplo a teoria de Charles Darwin, profundo estudioso da natureza, que nos ensinou que as espécies se desenvolvem à medida das suas necessidades de sobrevivência. Que não nos assome o orgulho da superioridade, que não nos engula a ganância da perfeição. Somos seres adaptáveis mas imperfeitos, crescentes ao medo e à incoerência da volatilidade da vida, o que nos transporta ( ironicamente), para o mais perto que temos do nosso melhor: a nossa resistência e a nossa extraordinária aprendizagem e adaptação. 

Não trata de uma aprendizagem prazerosa, muitas destas aprendizagens morrerão com a era COVID, irão atenuar-se com a futura “normalidade”, se não totalmente, pelo menos em grande escala. Chamemos-lhe uma aprendizagem essencial, um desafio que o mundo nos lançou num repto sem igual. A boa notícia, se me permitem o abuso positivo na linguagem, é que todos nós iremos olhar para as nossas faculdades de uma forma mais respeitosa e confiante. Ora vejam: imaginem que no passado alguém partilhasse esta premonição. Vos dissesse que viveriam os vossos dias longe de quem amam, isolados dos amigos, afastados dos vossos avós e dos vossos netos, impossibilitados de viajar, de conviver, de aproveitar o abraço, das pessoas e da vida, quiçá o que o mundo tem de melhor. Imaginem ainda que vos diziam que voltaríamos a um estado de emergência totalitária, onde o governo tomaria as rédeas da nossa liberdade, aquela que foi construida a pulso há muitos anos atrás, com sangue e com guerra, pelos Capitães de Abril e que agora nos escorre por entre os dedos como uma mão de areia, que quanto mais apertamos, mais se esvai sem percebermos como. Imaginem, por último, que vos diriam que a saúde do vosso país e a dinâmica corrente dos vossos hospitais seria engolida por fatos isolantes completos e complexos, por onde o ar não entraria e os sorrisos não sairiam, onde o calor de uns olhos seriam substituídos pelo anonimato de uma máscara branca e incógnita. Por certo, teriam sorrido. Provavelmente teriam encaixado esta distropia no domínio da fantasia, da utopia, do cinema ou da fantasia. A má notícia, que também há, para além de muitas outras, é que o cenário é a realidade de 2020 e 2021. 

E na verdade, cá estamos. Quem por obra de arte, respeito, obediência ou sorte, consegue ir sobrevivendo ao vírus mais dramático dos últimos anos, está apto a efectuar uma auto análise que nos pode fazer crescer até a um patamar mais elevado da existência: conseguiremos certamente elencar prioridades com a sabedoria de um mestre, perceberemos com certezas o valor do bem e o poder do mal, abriremos o nosso horizonte para os reais valores da existência humana, a importância do respeito pela natureza e pelo habitat animal, o valor da família, a extraordinária riqueza que é a nossa capacidade de crescer na adversidade. 

Infelizmente, para trás ficará um mundo velho. Ficarão todos os que não venceram a doença do século. Ficarão as saudades imensas das despedidas que não aconteceram, dos olhos que não acompanharam, das palavras apagadas pela eternidade. Ficará uma humanidade sofrida no cansaço dos dias, mortiça de tristeza por tudo o que se perdeu. 

E é por isso que quem avançar deverá celebrar e agradecer: o crescimento, a aprendizagem, o amor ao próximo, o desenvolvimento pessoal, a vida.

 

Dra. Carla Ferreira, Diretora de Recursos Humanos

terça, 08 de junho de 21